Como Design pode te ajudar a construir trajetórias pra vida

Está na hora de acabar com esse papo de vocação

Livia Holanda
7 min readApr 24, 2019
Era pra ser um teste para definir meu futuro, mas não tinha nada a ver com o que eu queria.

Era fim do ensino médio e a psicóloga da escola tinha rodado um testezinho nas salas de aula pra saber o que os estudantes deveriam fazer na faculdade. No momento da revelação do resultado, ela analisou minha ficha, tirou os óculos e olhou pra mim:

- Ó, pelo que vi aqui, carreiras boas pra você seriam na área de Odontologia, Musicoterapia e Matemática…

Eu, de fato, arrasava nos números e amava música.

- Mas… odonto? Nunca pensei…
- No seu teste deu que você gosta muito de trabalho manual e se apega a detalhes, coisa que dentista faz.

Fiquei desapontada. Queria muito fazer Comunicação. Meu coração já estava todo inclinado a realizar o sonho de ser moça do tempo ou publicitária dos jingles de sucesso. Antes de sair da salinha da psicóloga, tomei coragem e falei toda tímida, quase que pedindo encarecidamente:

- E Comunicação? Será que tem a ver comigo?
- Olha, pelo teste, seu score em áreas de humanas não é muito bom. Você não gosta de geografia, por exemplo. Mas se você quiser, eu posso acrescentar aqui e você trabalha isso.
- Ah, que bom! Eu quero sim!

Assim foi decidido meu primeiro passo em direção a uma carreira na vida, sendo a rebelde que "burla" (na base da negociação, que fique claro) o resultado do teste vocacional em prol dos próprios interesses. Mas era pra escolher a profissão de quem mesmo?

(╯°□°)╯︵ ┻━┻

Quase duas décadas depois, me tornei designer de produto digital. Me graduei em Publicidade, fiz especializações em Animação e, há 2 anos, conclui um mestrado em Design de Interação focada em Life Design. Mas toda vez que vou ao dentista, o que me vem à cabeça? Claro que eu lembro daquele teste vocacional e imagino o que seria essa outra Livia de odonto. Talvez ela seria mais endinheirada, talvez mais pé no chão… ou talvez nada disso. Seria uma dentista “miçanguera” que adora fazer dentes com ~materiais que a natureza dá~. Não tem como saber, né? Cada passo que a gente dá direciona a construção do nosso eu do futuro que é cheio de surpresinhas, e abrem-se tantos novos caminhos. Como um teste seria capaz de definir o rumo da minha vida inteira?

Isso seria um dente “tilelê” feito pela Livia de odonto, paz e amor.

Como assim cada pessoa nasce com uma vocação?

Foi observando minha trajetória profissional que comecei a questionar a eficiência dos métodos e ferramentas tradicionais de orientação de carreira, aquelas que vinham com respostas e soluções mágicas extremamente engessadas, mesmo diante das voltas que a vida de todo mundo dá.

O jeito old school, que ainda está sendo utilizado hoje para orientar as pessoas em busca de satisfação profissional, se baseia na crença de que podemos ser categorizados e classificados em caixinhas de interesse. Old school, eu reforço, porque é baseado na metodologia de Frank Parsons de 1901, de análise de personalidade. Tudo bem que o cara foi genial em bolar uma forma de pontuar as afinidades das pessoas gerando scores que apontavam para profissões específicas, colocando cada pessoa numa gavetinha de estereótipo.

Mas cá pra nós, você quer ser orientado de acordo com uma sugestão baseada num estereótipo? E outra, quanta coisa muda em um século? As dinâmicas de trabalho são diferentes, as carreiras, as pessoas, o mundo… Será que usar os mesmos métodos de orientação ainda faz sentido?

“A ideia de que há apenas um caminho, pré determinado por vocação, para um ser de identidade mutável e adaptável a cenários de vida fluidos carece de atualização”
Maria Duarte

Parsons arrasou no modelo de orientação que formulou e certamente ajudou muita gente nessa longa estrada da vida, só que não considerou uma coisinha que sempre fez, faz e fará diferença em momentos de decisões: contexto. Hoje, diferente do que Parsons defendia, não há como definir e atualizar uma carreira por toda vida, pelo contrário, a cada realidade, uma nova demanda se cria. Por exemplo, em tempos de crise econômica, é complicado dizer pra alguém seguir seu coração quando a barriga não está cheia. É preciso estar num contexto favorável pra dar espaço aos nossos desejos reais de carreira. Quando falta o pão na mesa, a questão costuma ser mais prática e racional, não cabe tanto romantismo. Isso é sobre olhar para o contexto.

Mesmo assim, quanta gente ainda é analisada por meio de avaliações como as que fiz nas escolas, nos consultórios, ou baixa mil apps em busca do direcionamento para o próximo passo? Muita gente. E quantas dessas pessoas encontram o futuro de “sucesso” almejado a partir dessas orientações? Não sei dizer, mas conseguimos sentir um cheirinho do que seria essa resposta analisando posturas dos nossos círculos de amizade.

Você é feliz no seu trabalho?

“Mas trabalho não é pra ser feliz. É pra pagar boletos”

Conectar seu trabalho com seus interesses pode te fazer muito bem, nem que seu foco seja apenas pagar boletos. Se você tem um propósito claro para trabalhar com o que trabalha, mesmo que não seja sua paixão (se for, você é privilegiado sim), você entende que aquilo tem sentido no todo que é sua vida. Caso contrário, temos um problema.

Siliga: as jornadas de trabalho mais comuns no Brasil ainda são as de 40 horas semanais. O que são 8 horas num dia que você gasta mais ou menos 3 horas pra se ajeitar e se locomover para esse trabalho numa cidade como São Paulo? Agora soma um tempinho de almoço, aquela esticada no horário do fim do dia… Supondo que você durma 7 horas por dia, sobraram aí umas 4 horas pra você ser feliz. Boa sorte, amigo.

Faz sentido que sua vida só comece quanto você está fora do trampo? Que você só viva como gostaria durante suas férias? Que os finais de semana sejam os dias mais satisfatórios porque você não tem que pisar no escritório?

Não faz sentido separar a vida profissional da pessoal

A construção de carreira é a construção da própria vida. As pessoas estão continuamente fazendo o melhor que podem dentro dos contextos que estão inseridas, e isso é em relação a amizades, empregos, estudos, moradia, romances... Por que uma análise para planejar o futuro não levaria em consideração o momento atual com todas suas variáveis e nuances? Se for pra construir opções de trajetória de vida, é essencial que ela tenha um ponto de partida concreto e real.

Visualizar as inúmeras opções que temos, pode nos ajudar a fazer escolhas mais assertivas.

O Life Design é um método de orientação, proposto por Mark Savickas e Maria Duarte (2009), focado em construção de trajetórias de vida, em vez de vocação. A crença aqui é de que uma orientação adequada não deveria ser baseada em traços de personalidade, mas na nossa identidade. A nossa identidade, diferente da personalidade, é construída com o tempo, de acordo com nossas vivências, e englobam tudo que faz parte das nossas vidas.

“O novo paradigma de que aqui se fala não se centra no estudo de como as carreiras se desenvolvem ao longo do tempo, mas antes e como as pessoas vão construindo as suas vidas também através do trabalho, no estudo dos trabalhos que vão realizando, dos empregos por onde vão passando, das procuras de satisfação e de realização pessoal, em suma, dos ajustamentos que fazem às realidades sociais, políticas e econômicas em que de alguma maneira se inserem” Maria Duarte

Nós, seres humanos, mudamos com o tempo. E se a gente muda, nossas necessidades também mudam. E nossos trabalhos também poderiam acompanhar essas mudanças. Ciente desse cenário fluido, Bill Burnett, autor de Design your Life e professor da escola de Life Design de Stanford, propõe aplicar métodos de design para encontrar opções de carreira (e de vida, já conversamos sobre isso, né?) a partir da exploração de possibilidades de acordo com as afinidades que identificamos. Em vez de se focar em uma única ideia e tentar evolui-la como a “bala de ouro”, vamos explorar vários caminhos possíveis de futuro, convergir para alguns que tenham mais sentido no contexto atual e fazer inúmeras ideações até encontrar uma opção que nos satisfaça.

“Dysfunctional belief: I have to find the one right idea.
Reframe: I need a lot of ideas so that I can explore any number of possibilities for my future.”
Bill Burnett

Em suma, o objetivo do Life Design é trazer uma nova abordagem que entenda os novos tempos e os cenários de vida fluidos nos quais nos inserimos, para que não seja tão árdua a nossa adaptação diante de tempos tão diferentes e das nossas mudanças internas (que às vezes temos dificuldade de aceitar).

A ideia é acabar com esse papo de “preciso ser dentista por toda vida”, e ser capaz de assumir com coragem e autonomia o seu destino “vou construindo minha jornada e minha vida de acordo com meus contextos e necessidades. É ok cansar de ser dentista e virar professora, por exemplo. Vou gerar novas ideias e iterar, como designers fariam”.

O Life Design pode nos ajudar a olhar pra dentro de nós pra conseguir enxergar o que realmente queremos pra nossas vidas. Isso nos dá poder de escolha e de construção das nossas próprias narrativas. Vamos nessa?

Tá, queridjeenha, mas como?

A minha ideia é escrever um post mais prático sobre como essa metodologia funciona e como aplicar isso na vida real. Vocês querem? Pra me motivar então, claps, please?

PS: Estudei esses métodos entre 2015 e 2017 para meu mestrado acadêmico em Design de Interação na UnB, que era uma proposta de app pra Life Design. O conteúdo passava pelo sentido do trabalho, por questões geracionais, inteligências múltiplas, análises heurísticas de apps, ferramentas de orientação e sistemas adaptativos, mas se quiser dar uma olhadinha lá, toma um link.

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Livia Holanda

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